sábado, 26 de novembro de 2011

Crônica de uma escalada



No último domingo (20.11.2011) aconteceu o Desafio Serra de Campos, evento já tradicional do ciclismo amador em sua 10ª edição. Participei em Campos do Jordão com mais 15 intrépidos ciclistas capixabas.

Minha primeira participação em 2009 talvez tenha sido um marco, ainda que obscuro, no ciclismo capixaba, quando propus a 2 amigos o desafio; em 2010 já fomos em 8 participantes. O desafio é simples: pedalar na Serra da Mantiqueira e chegar a Campos do Jordão. Desafio lançado, a parte complicada é enfrentar a serra e vencer o desafio.

Cada desafiante tem a sua história, a minha começa com alguns meses de treinamento específico nas montanhas capixabas; cuidados com a alimentação e suplementação; planejamento, execução e acompanhamento do treino de 5 alunos; motivar outros a nos acompanhar; manter o foco nas atividades profissionais; prover transporte e hospedagem para atletas e familiares; administrar o tempo entre treinos e atividades familiares; não demonstrar cansaço no tempo dedicado à família; deixar a bicicleta super-preparada; ter a bicicleta furtada a 15 dias da corrida; manter o foco; arrumar outra bike; ajeitá-la o melhor possível; superar mais dificuldades; não desesperar; mudar as expectativas para a prova; para enfim relaxar e curtir a viajem.

Na hora da largada se cruzam milhares dessas histórias formando uma colcha colorida de ciclistas e bicicletas que cobrem o pavimento da pequena e pacata São Bento do Sapucaí. A corrida se desenrola e a colcha vai se abrindo, permitindo contemplar a paisagem e a serra que nos aguardam. As histórias agora vão se desenrolando ao vivo, compartilhando o mesmo tempo e agora contrariando as leis da física e os limites do espaço. 3 kilômetros apenas são necessários para que qualquer expectativa caia por terra quando a serra se apresenta de súbito. Inclinações peculiares, para não dizer grotescas. O que se vê parece uma evacuação ante uma catástrofe, que fosse um grande vácuo a sugar tudo nas altitudes mais baixas. 

Parece só haver um lugar seguro: o topo! Gente pedalando apressadamente, outros já fadigados. Uns já empurram as bicicletas, outros param à beira da estrada. Correntes estalando, problemas mecânicos, pneus furados estabelecem a aura de pânico do sofrimento que há de vir. Alarmes sonoros de frequencímetros enlouquecidos deixam sem ofegantes até quem os escuta. Vou passando, tentando manter a calma e poupar as energias. Alguns imprudentes na pressa da fuga vão ao chão. 

A paisagem já não aparece mais; apenas me lembro da Fundação Paiol Grande e de uma Igreja onde a comunidade celebra a Missa. As pernas empurram, o coração aperta. No monitor marcam 6km quando parei pra me aliviar (do jargão ciclístico, urinar). Faltou coragem para retomar o percurso pedalando... coloquei a bicicleta nas costas como um atleta de Ciclocross, e juntei-me à romaria dos empurrantes, aguardando um alívio no terreno que me permitisse retornar aos pedais. Tentei pedalar; depois da primeira curva um posto de hidratação: naquelas condições ou se pedala ou se bebe água. Desclipei e peguei 2 garrafas, encostei a bicicleta numa cerca e bebi calmamente. 

Continuei a empurrar; parecia muito o que imagino ser o purgatório: muita gente carregando o peso das faltas, gente lamentando, maldizendo, murmurando; outros rezando em silêncio, procurando não esquecer que há uma meta. Lembro –me de ter recitado alguns versos do Salmo 50, “Senhor Misericórdia... Lavai-me e ficarei mais branco que a neve”. Avistei e contemplei um cachoeira de uns 50m de queda d’água. Empurrei até o km 11. Não há foto ou vídeo que comprove o que relatei; apenas os testemunhos de outros tantos na mesma situação.

Nos kilômetros que se seguem, exercícios de companheirismo... vou passando e conversando, animando os mais lentos. A coragem reaparece e posso novamente pensar na meta. Aperto mais os pedais, vou acompanhando os que tentam passar mais rápido. Animo-me: agora ninguém mais me passará!

Cruzo a linha final sem lembrar da história por trás da escalada. Já não há mais dor nem sofrimento. A chegada ao Céu poderia ser assim: aplausos e palavras de ânimo. Avisto minha esposa e minha filha. Logo chegam os amigos; uns riem, comemoram. Outro chora, emocionado com a conquista. Um não chega enquanto outro se gaba! Para esses, nossas histórias voltam a acontecer em paralelo novamente. Outras que trancorreram tão perto voltam às suas trajetórias distantes.

A Vitória? Se ela realmente existe, pertence à cada um que alcançou um pouco de sua expectativa. O desafio? Agora é passado! Quando será o próximo?