No último domingo (20.11.2011) aconteceu o Desafio Serra
de Campos, evento já tradicional do ciclismo amador em sua 10ª edição. Participei
em Campos do Jordão com mais 15 intrépidos ciclistas capixabas.
Minha primeira participação em 2009 talvez tenha sido um
marco, ainda que obscuro, no ciclismo capixaba, quando propus a 2 amigos o
desafio; em 2010 já fomos em 8 participantes. O desafio é simples: pedalar na
Serra da Mantiqueira e chegar a Campos do Jordão. Desafio lançado, a parte
complicada é enfrentar a serra e vencer o desafio.
Cada desafiante tem a sua história, a minha começa com
alguns meses de treinamento específico nas montanhas capixabas; cuidados com a
alimentação e suplementação; planejamento, execução e acompanhamento do treino
de 5 alunos; motivar outros a nos acompanhar; manter o foco nas atividades
profissionais; prover transporte e hospedagem para atletas e familiares; administrar
o tempo entre treinos e atividades familiares; não demonstrar cansaço no tempo
dedicado à família; deixar a bicicleta super-preparada; ter a bicicleta furtada
a 15 dias da corrida; manter o foco; arrumar outra bike; ajeitá-la o melhor
possível; superar mais dificuldades; não desesperar; mudar as expectativas para
a prova; para enfim relaxar e curtir a viajem.
Na hora da largada se cruzam milhares dessas histórias
formando uma colcha colorida de ciclistas e bicicletas que cobrem o pavimento
da pequena e pacata São Bento do Sapucaí. A corrida se desenrola e a colcha vai
se abrindo, permitindo contemplar a paisagem e a serra que nos aguardam. As histórias
agora vão se desenrolando ao vivo, compartilhando o mesmo tempo e agora
contrariando as leis da física e os limites do espaço. 3 kilômetros apenas são necessários
para que qualquer expectativa caia por terra quando a serra se apresenta de
súbito. Inclinações peculiares, para não dizer grotescas. O que se vê parece
uma evacuação ante uma catástrofe, que fosse um grande vácuo a sugar tudo nas
altitudes mais baixas.
Parece só haver um lugar seguro: o topo! Gente pedalando
apressadamente, outros já fadigados. Uns já empurram as bicicletas, outros
param à beira da estrada. Correntes estalando, problemas mecânicos, pneus
furados estabelecem a aura de pânico do sofrimento que há de vir. Alarmes sonoros
de frequencímetros enlouquecidos deixam sem ofegantes até quem os escuta. Vou
passando, tentando manter a calma e poupar as energias. Alguns imprudentes na
pressa da fuga vão ao chão.
A paisagem já não aparece mais; apenas me lembro da
Fundação Paiol Grande e de uma Igreja onde a comunidade celebra a Missa. As
pernas empurram, o coração aperta. No monitor marcam 6km quando parei pra me
aliviar (do jargão ciclístico, urinar). Faltou coragem para retomar o percurso
pedalando... coloquei a bicicleta nas costas como um atleta de Ciclocross, e
juntei-me à romaria dos empurrantes, aguardando um alívio no terreno que me
permitisse retornar aos pedais. Tentei pedalar; depois da primeira curva um
posto de hidratação: naquelas condições ou se pedala ou se bebe água. Desclipei
e peguei 2 garrafas, encostei a bicicleta numa cerca e bebi calmamente.
Continuei
a empurrar; parecia muito o que imagino ser o purgatório: muita gente
carregando o peso das faltas, gente lamentando, maldizendo, murmurando; outros
rezando em silêncio, procurando não esquecer que há uma meta. Lembro –me de ter recitado alguns versos do Salmo 50, “Senhor
Misericórdia... Lavai-me e ficarei mais branco que a neve”. Avistei e
contemplei um cachoeira de uns 50m de queda d’água. Empurrei até o km 11. Não há
foto ou vídeo que comprove o que relatei; apenas os testemunhos de outros
tantos na mesma situação.
Nos kilômetros que se seguem, exercícios de
companheirismo... vou passando e conversando, animando os mais lentos. A coragem
reaparece e posso novamente pensar na meta. Aperto mais os pedais, vou
acompanhando os que tentam passar mais rápido. Animo-me: agora ninguém mais me
passará!
Cruzo a linha final sem lembrar da história por trás da
escalada. Já não há mais dor nem sofrimento. A chegada ao Céu poderia ser assim:
aplausos e palavras de ânimo. Avisto minha esposa e minha filha. Logo chegam os
amigos; uns riem, comemoram. Outro chora, emocionado com a conquista. Um não
chega enquanto outro se gaba! Para esses, nossas histórias voltam a acontecer em
paralelo novamente. Outras que trancorreram tão perto voltam às suas
trajetórias distantes.
A Vitória? Se ela realmente existe, pertence à cada um
que alcançou um pouco de sua expectativa. O desafio? Agora é passado! Quando será
o próximo?